A importância
da leitura tornou-se um lugar tão comum quanto a constatação de que o
brasileiro não lê. Multiplicam-se nas revistas para pais e mães matérias sobre
a necessidade de apresentar as crianças aos livros o quanto antes, por razões
que – imagino, porque nunca tive paciência para ler essas matérias a fundo –,
dizem respeito ao desenvolvimento cognitivo da criança, ao processo de
alfabetização, a habilidades intelectuais que serão cruciais para que aquele
indivíduo vença na vida. E embora eu tenha apenas uma noção superficial do
conteúdo dessas matérias, arrisco afirmar que minha imaginação tem pés bem
fincados na realidade, porque é justamente o que vem escrito nos selos
coloridos que trazem aqueles livros cartonados, sem autor, com texturas e
brilhos: “estímulo visual”; “estímulo sensorial”; “aprendizado das cores”,
entre outras mensagens promocionais inspiradas no Baby Einstein. Lembro inclusive de uma matéria afixada no quadro de
avisos da antiga escola da minha filha que constatava a completa indiferença a
respeito do que se lê. Importava apenas ler, sendo a leitura Lobato, gibi ou revista
Veja.
Que
o brasileiro não lê, verdade tornada tão banal que já não se pensa sobre ela, lembramos
apenas como mais um item no rol de lamúrias acerca da nossa condição de
terceiro mundo (ou “país em desenvolvimento”, para não ser antiquada). Mas a
sensação é a de que jogamos a toalha há muito tempo, e a verdade dada virou uma
previsão astrológica. Não lemos, nem nunca leremos – aliás, se possível,
leremos cada vez menos. (E que permaneça às traças a Biblioteca Demonstrativa
de Brasília.)
Ocorre
que a importância – ou melhor dizendo, a imprescindibilidade – da leitura na
primeira infância, se queremos evoluir como sociedade, vai muito além de seus
benefícios individuais. E mesmo na escala individual, a literatura não pode se
restringir a um meio para que se adquiram habilidades utilitárias e
profissionais, ou, em outras palavras: leio para o meu filho para que ele seja
rico no futuro. Não se trata de construir capitais privados, voláteis e vazios.
Trata-se de construir um indivíduo livre e comunitário. O direito à literatura,
como ensina Antônio Cândido, é essencial para se escapar ao subdesenvolvimento.
E
por que não lemos? Porque é mais legal jogar no Ipad, oras! Ou ver televisão, ou trocar mensagens pelo wattsap. Então o Governo faz campanhas e
os educadores se matam para propagandear um hábito já obsoleto, sem muito
resultado. Ler, muitos responderão, é chato.
E
por que ler é chato? Não posso culpar a mídia eletrônica, que chegou não apenas
para ficar, mas para evoluir de maneira atordoante e dominar todos os espaços
que puder. Convivamos com isso. Ler é (considerado) chato porque a leitura está
associada à instituição escolar. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil,
promovida a cada três anos pelo Instituto Pró-Livro, constatou em 2011 que pela
primeira vez os professores eram apontados como os principais iniciadores da
leitura, e não mais as mães. Deslocou-se a literatura do colo para a carteira.
Bons
livros não precisam de propaganda para competir com vídeos e jogos eletrônicos.
O ser humano é naturalmente sedento de histórias, e é natural que uma criança
bem pequena, que ainda não teve sua percepção afetada por estímulos exagerados
que ela não consegue processar, fique fascinada com aquele objeto físico,
concreto, palpável, que se abre e se fecha, que se rasga, com a virada de
página e a descoberta de imagens coloridas e com os belos sons que brotam da
boca da mãe. Sobre o efeito que a exposição de bebês à mídia eletrônica tem em
sua recepção posterior dos livros, eu teria de falar em outra oportunidade.
O
livro, portanto, deve ser visto pelo mediador, especialmente pais, avós, tios
da criança, como um brinquedo, e não um “brinquedo pedagógico”, na acepção mais
insípida da expressão, mas como um objeto de deleite para a criança. A criança
não lerá porque é importante ler; ela lerá porque é agradável, fascinante, bom.
Ela chegará ao ponto de, nem bem saiba caminhar em duas pernas, buscar a mãe
pelos cômodos da casa com um livro na mão, pedindo: “lê, mamãe, lê!”. E a mãe
não se sentirá culpada por, eventualmente, descartar uma oportunidade (em
outras partes excepcional) de interesse da criança por um objeto de prestígio
intelectual, e poderá dizer tranquilamente: “agora não, amor, mamãe está
preparando o almoço”. Porque elas leem ao longo do dia tanto quanto brincam com
brinquedos. Elas leem como respiram, porque o corpo pede.
É
evidente que essa postura esbarra nas experiências do mediador com o objeto
livro. Uma mãe, um pai ou mesmo um professor que sempre teve uma relação fria e
utilitária com a literatura terá mais dificuldades para transmitir às crianças
seu sabor. Mas nunca é tarde para começar, e a mediação da leitura com crianças
pode despertar no adulto amores perdidos.
É
necessário reaprender tudo. Alguém tem de nos dizer que é importante beber
água, dormir, brincar. Coisas que os animais aparentemente não se esquecem de
fazer. E alguém tem de nos dizer que é importante ler. Abrir mão do direito à literatura, ou não lutar por ele
quando nos é negado, é perder uma oportunidade emancipatória, não apenas como
indivíduos, mas também como sociedade.
A
melhor maneira de aniquilar as práticas literárias de uma comunidade é barrar o
mediador. Quando as mães já não sabem, não podem, não querem ler para seus
filhos, o colo já não é mais o lugar da literatura; o hálito materno já não é
mais o aroma da literatura; a voz materna já não é mais o som da literatura. Perde-se
o afeto que nos liga aos livros. E ler fica chato. E seguimos na nossa condição,
individual e coletiva, de subdesenvolvimento.
Oi Lia! Vi seu comentário lá na Roberta Lippi e quis conhecer o teu blog.
ResponderExcluirEmocionante e cheio de verdades esse post inicial.
"O hálito materno já não é mais o aroma da literatura..." Dizer que amei a frase, fica incoerente, então realmente é preciso reaprender.
Parabéns pelas filhas-poetas!
Beijo.
Feliz com teu retorno a blogosfera, ainda mais com um tema tão importante e inspirador para todos nós adultos e crianças.
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