quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Carlos Lébeis e A chácara da rua um



Emília, minha primogênita, começou cedo com as leituras de fôlego. Me lembro de amamentar a caçula enquanto lia As crônicas de Nárnia pra ela, que tinha só 3 anos e meio. Ela me interrompia o tempo todo perguntando o significado das palavras, levantava, ia fazer outra coisa. Eu dizia: “vamos parar, esse livro está muito complicado pra você”. Ela não deixava. E toda noite era assim, tínhamos de ler um capítulo inteiro.

Margarida, a segunda, já preferia textos mais curtos. Durante muito tempo eu e marido nos revezávamos: um lia livros compridos com Emília, o outro lia livros ilustrados com Margarida e Aninha. Agora, com quase quatro anos, senti que Margarida estava pronta para uma história mais extensa e elaborada. Eu tinha C.S. Lewis, Astrid Lindgren (Pippi Meialonga) e Lobato, mas não foi nenhum deles que escolhi para introduzi-la no mundo do romance. 

Foi um livrinho antigo que eu não conheci na infância, provavelmente por ter ficado muitos anos sem ser editado. Um livrinho bucólico, mágico, sem a ironia de Lobato, mas cheio de recursos literários que já não ousamos mais inserir em livros infantis: A chácara da rua um (Cosac Naify, 2014), de Carlos Lébeis. 

Lébeis foi contemporâneo de Lobato e participou, a partir da década de 1920, da renovação de nosso empoeirado acervo infantil. Não teve uma produção prolífica como a de Lobato, também não herdou a mesma fama. Mas é um autor nada desprezível, de quem a Cosac Naify resolveu republicar dois livros – No País dos quadratins (1928) e A chácara da rua um (1936) – e publicar o até então inédito Cafundó da infância (2011), este último com aquarelas de Anita Malfatti. No país dos quadratins (Cosac Naify, 2012) traz ilustrações de Cândido Portinari – que, sinceramente, prefiro em telas ou paineis.

Ainda não tive a oportunidade de ver as ilustrações da Anita Malfatti; o Cafundó da infância (Cosac Naify, 2011) ainda está dentro do plástico, guardado na nossa “caixa mágica” – ou arquivo de livros novos para serem dados às crianças em doses homeopáticas e em momentos oportunos. Mas confesso que o Portinari me decepcionou. Achei as ilustrações todas muito parecidas umas com as outras, como se ele estivesse mais fazendo experimentação com as figuras dos quadratins que de fato ilustrando um livro. Existe alguma coisa que se rompeu no diálogo entre o texto e a ilustração. Sem contar que são pouquíssimas e pequenas, e vários capítulos não trazem ilustração nenhuma. Melhor seria terem contratado outro artista para reilustrar o livro e trazer as ilustrações de Portinari em um apêndice, a título de curiosidade.

Prefiro as ilustrações clássicas e simples de João Fahrion na Chácara da rua um, e aqui começo falando do primeiro livrinho de fôlego apresentado à Margarida. São aqueles desenhos (a maioria preto e branco) feitos a partir das descrições do texto, ilustrações redundantes, sim, mas que ajudam o leitor a construir as imagens visuais que o texto verbal sugere. Há algumas incongruências com o texto – o Tizio, por exemplo, um menino negro, é branco na ilustração; e Calunguinha, o morador da jaqueira grande que tem menos de meio dedo de altura, parece bem maior nas figuras. Mas gosto delas, com seu desajeito. Elas têm cara de livro de infância.

O livro, como eu disse, é um romance. É para ser lido em capítulos, mais ou menos um por dia. Não lembro exatamente quantos são, mas terminamos a leitura em aproximadamente uma semana. É “o livro do Grão de Milho”, um menino com os cabelos amarelos como milho que certa noite é visitado por um homem em miniatura. O cenário, assim como em Lobato, é a roça, a chácara com suas árvores frutíferas e as brincadeiras de criança. Calunguinha, a mini-pessoa, é um de uma raça de sopradores de frutas, que habitam os troncos e galhos das árvores e fabricam as mais variadas frutas, enchendo-as como um balão. O livro joga com as dimensões espaciais, com o tamanho das coisas, como as Viagens de Gulliver: Grão de Milho encolhe para visitar o interior das árvores ao lado de Calunguinha, levando consigo seu cachorro Zigue-Zague.

Lébeis conta esta cativante história com uma linguagem cheia de repetições e bordões, enumerações e cantigas. “Quem é que pode com a minha vida?”, é o que sempre diz Calunguinha – que é pequeno porque quer – ao fim de seus discursos. E Margarida se apaixonou pela cantilena de Seu José Jardineiro: “Então que raça de bicho é? É jacaré? Também não é!” 

Supreendente também na Chácara da rua um é o final aberto, tão receado por escritores de livros infantis. Quando o círculo narrativo parece se fechar – o menino diminuiu, viveu a aventura e consegue crescer de novo –, Lébeis insere um capítulo no mínimo estranho, no qual Grão de Milho vê os avós e a Dindinha acenando da janela de um trem que parte. O menino tenta alcança-los saltando sobre outro trem, que corre no trilho ao lado, e vê o mundo todo passando, a chácara, a jaqueira grande, a jabuticabeira onde homens pequeninos sopravam as paredes, inflando as frutas que cresciam sobre os galhos... Zigue-Zague fica para trás, correndo e latindo atrás do trem, até virar um ponto minúsculo e desaparecer da vista de Grão de Milho. 

“Mamãe, e ele conseguiu buscar o cachorro depois?” “E porque os avós estavam indo embora?”. Perguntas inquietas de crianças habituadas a ler apenas finais claros, fechados e felizes.

Lébeis não explica mais muita coisa. João Fahrion, o ilustrador, conclui o livro com a imagem de Grão de Milho ao lado de Zigue-Zague, piscando pro leitor.

E eu tive de explicar a elas que assim a gente podia inventar o nosso final.

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