Emília, minha primogênita,
começou cedo com as leituras de fôlego. Me lembro de amamentar a caçula
enquanto lia As crônicas de Nárnia pra
ela, que tinha só 3 anos e meio. Ela me interrompia o tempo todo perguntando o
significado das palavras, levantava, ia fazer outra coisa. Eu dizia: “vamos parar,
esse livro está muito complicado pra você”. Ela não deixava. E toda noite era
assim, tínhamos de ler um capítulo inteiro.
Margarida, a segunda, já preferia textos mais curtos. Durante muito tempo eu e marido nos revezávamos: um lia livros compridos com Emília, o outro lia livros ilustrados com Margarida e Aninha. Agora, com quase quatro anos, senti que Margarida estava pronta para uma história mais extensa e elaborada. Eu tinha C.S. Lewis, Astrid Lindgren (Pippi Meialonga) e Lobato, mas não foi nenhum deles que escolhi para introduzi-la no mundo do romance.
Foi um livrinho antigo que eu não
conheci na infância, provavelmente por ter ficado muitos anos sem ser editado.
Um livrinho bucólico, mágico, sem a ironia de Lobato, mas cheio de recursos
literários que já não ousamos mais inserir em livros infantis: A chácara da rua um (Cosac Naify, 2014), de Carlos Lébeis.
Lébeis foi contemporâneo de
Lobato e participou, a partir da década de 1920, da renovação de nosso
empoeirado acervo infantil. Não teve uma produção prolífica como a de Lobato,
também não herdou a mesma fama. Mas é um autor nada desprezível, de quem a
Cosac Naify resolveu republicar dois livros – No
País dos quadratins (1928) e A chácara da rua um (1936)
– e publicar o até então inédito Cafundó
da infância (2011), este último com aquarelas de Anita Malfatti. No país dos quadratins (Cosac Naify, 2012) traz ilustrações de
Cândido Portinari – que, sinceramente, prefiro em telas ou paineis.
Ainda não tive a oportunidade de
ver as ilustrações da Anita Malfatti; o Cafundó
da infância (Cosac Naify, 2011) ainda está dentro do plástico, guardado na nossa “caixa mágica”
– ou arquivo de livros novos para serem dados às crianças em doses homeopáticas
e em momentos oportunos. Mas confesso que o Portinari me decepcionou. Achei as
ilustrações todas muito parecidas umas com as outras, como se ele estivesse
mais fazendo experimentação com as figuras dos quadratins que de fato
ilustrando um livro. Existe alguma coisa que se rompeu no diálogo entre o texto
e a ilustração. Sem contar que são pouquíssimas e pequenas, e vários capítulos
não trazem ilustração nenhuma. Melhor seria terem contratado outro artista para
reilustrar o livro e trazer as ilustrações de Portinari em um apêndice, a
título de curiosidade.
Prefiro as ilustrações clássicas
e simples de João Fahrion na Chácara da rua um, e aqui começo falando
do primeiro livrinho de fôlego apresentado à Margarida. São aqueles desenhos (a
maioria preto e branco) feitos a partir das descrições do texto, ilustrações
redundantes, sim, mas que ajudam o leitor a construir as imagens visuais que o
texto verbal sugere. Há algumas incongruências com o texto – o Tizio, por
exemplo, um menino negro, é branco na ilustração; e Calunguinha, o morador da
jaqueira grande que tem menos de meio dedo de altura, parece bem maior nas figuras.
Mas gosto delas, com seu desajeito. Elas têm cara de livro de infância.
O livro, como eu disse, é um romance. É para ser lido em
capítulos, mais ou menos um por dia. Não lembro exatamente quantos são, mas
terminamos a leitura em aproximadamente uma semana. É “o livro do Grão de
Milho”, um menino com os cabelos amarelos como milho que certa noite é visitado
por um homem em miniatura. O cenário, assim como em Lobato, é a roça, a chácara
com suas árvores frutíferas e as brincadeiras de criança. Calunguinha, a
mini-pessoa, é um de uma raça de sopradores de frutas, que habitam os troncos e
galhos das árvores e fabricam as mais variadas frutas, enchendo-as como um
balão. O livro joga com as dimensões espaciais, com o tamanho das coisas, como
as Viagens de Gulliver: Grão de Milho
encolhe para visitar o interior das árvores ao lado de Calunguinha, levando consigo
seu cachorro Zigue-Zague.
Lébeis conta esta cativante
história com uma linguagem cheia de repetições e bordões, enumerações e
cantigas. “Quem é que pode com a minha vida?”, é o que sempre diz Calunguinha –
que é pequeno porque quer – ao fim de seus discursos. E Margarida se apaixonou
pela cantilena de Seu José Jardineiro: “Então que raça de bicho é? É jacaré?
Também não é!”
Supreendente também na Chácara da rua um é o final aberto, tão receado
por escritores de livros infantis. Quando o círculo narrativo parece se fechar
– o menino diminuiu, viveu a aventura e consegue crescer de novo –, Lébeis
insere um capítulo no mínimo estranho, no qual Grão de Milho vê os avós e a
Dindinha acenando da janela de um trem que parte. O menino tenta alcança-los
saltando sobre outro trem, que corre no trilho ao lado, e vê o mundo todo
passando, a chácara, a jaqueira grande, a jabuticabeira onde homens pequeninos
sopravam as paredes, inflando as frutas que cresciam sobre os galhos...
Zigue-Zague fica para trás, correndo e latindo atrás do trem, até virar um
ponto minúsculo e desaparecer da vista de Grão de Milho.
“Mamãe, e ele conseguiu buscar o
cachorro depois?” “E porque os avós estavam indo embora?”. Perguntas inquietas
de crianças habituadas a ler apenas finais claros, fechados e felizes.
Lébeis não explica mais muita
coisa. João Fahrion, o ilustrador, conclui o livro com a imagem de Grão de
Milho ao lado de Zigue-Zague, piscando pro leitor.
E eu tive de explicar a elas que
assim a gente podia inventar o nosso final.
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