quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Guilherme de Almeida

Nem só de literatura infantil precisam viver as crianças (e nem só de literatura não infantil precisam viver os adultos). De vez em quando, um ilustrador, uma editora, um tradutor decidem ressituar um texto até então restrito aos círculos mais maduros. Se não há uma adaptação do texto – como com Shakespeare, Cervantes, Defoe –, ele chegará às crianças por meio da ilustração. Então, por favor: alguém ilustra Guilherme de Almeida?

Esse poeta modernista, pelo pouco que pesquisei, não tem nenhuma coletânea de poemas publicada em edição ilustrada para crianças. Almeida traduziu A cartola e outras histórias, da série Juca e Chico, de Wilhelm Busch. O Juca e Chico propriamente dito teve sua primeira tradução aqui por Olavo Bilac. Legados, portanto, de grandes poetas brasileiros à nossa literatura infantil via tradução.
O poema Bailado russo, de Almeida, aparece na Antologia Poética para a infância e a juventude de Henriqueta Lisboa (1966), mas sem ilustrações. Eis a primeira estrofe:

        A mão firme e ligeira
       puxou com força a fieira:
       e o pião
       fez uma eclipse tonta
       no ar e fincou a ponta
       no chão.
   
Mas pra mim, o que renderia um lindo livrinho são os haicais  de Guilherme. Vejam só:

CONSOLO

A noite chorou
a bolha em que, sobre a folha,
o sol despertou.

PESCARIA

Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha.

CARIDADE

Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.

AQUELE DIA

Borboleta anil
que um louro alfinete de ouro
espeta em Abril

QUIRIRI

Calor. Nos tapetes
tranquilos da noite, os grilos
fincam alfinetes.

INFÂNCIA

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".

CIGARRA

Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.

JANEIRO

Jasmineiro em flor.
Ciranda o luar na varanda.
Cheiro de calor.

TRISTEZA

Por que estás assim,
violeta? Que borboleta
morreu no jardim?

PERNILONGO

Funga, emaranhada
na trama que envolve a cama,
uma alma penada.

O próprio Guilherme relaciona o ritmo da toada oriental à nossa trova popular, ao folclore e à nossa fala:

Os ritmos ímpares "elementares" (de 5 e de 7 sílabas), peculiares à língua japonesa, também o são à nossa. O verso segundo do haicai, o de 7 sílabas, é a redondilha, que nasceu com a nossa poesia na Galiza, fez se a medida clássica de todos os nossos importados "romances", a música natural da nossa "trova popular", o diapasão da modinha capadócia, a nossa expressão folclórica por excelência, e mesmo a medida inconsciente, automática, da nossa fala. Diz-se até que nós falamos, sem o querer, por septissílabos. Os provérbios, os ditados plebeus, são exemplos disso: - "Nem tudo o que é luz é ouro"; "água mole em pedra dura - tanto dá até que fura", etc... Outro ritmo do haicai - o verso de 5 sílabas - é também velho habitual na nossa língua. Vem dos estribilhos medievais, dos refrões dos "Cancioneiros": "D'amores ei mal" (Ruy Paesde Ribella);"Os amores ei" (Pero Alcobo), etc; tornou-se a toada musical nas serraninhas brasileiras: 

"Papagaio louro
Do bico dourado
Leva-me esta carta
Ao meu namorado"

das nossas tradicionais "Pastorelas":

"Bela Pastorinha.
Que fazeis aqui?
- Pastoreando o gado
Que eu aqui perdi"

É ou não é? Ah, como eu queria esses poeminhas ilustrados!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Para as crianças que estão ocupando as escolas



Ocupação

Ela tremia, enquanto lá fora soavam as buzinas. As horas de vigília faziam uma exaustão que não deixava relaxar. Pensava na mãe. Como era mesmo aquela reza do anjinho da guarda? Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador...

Queria fazer xixi. Então sentiu que ia chorar, mas o choro era como o sono: precisava de paz pra acontecer. Deitada no chão, encolhida, ela olhava o infinito depois da parede. Quis chupar o dedo, mas já não sabia como. Então se pôs a roer as unhas, e uma lágrima desceu; mas os olhos não piscavam.  

Sentiu uma mão que lhe afagava os cabelos. As pálpebras cederam, e ela não sabe se dormiu, porque havia luzes e buzinas.
          
E, no entanto, nada disso era ainda o inferno. Pois quando tudo acabou, ela não tinha mais nada, e aqueles homens bestificados pela impiedade tinham na cara o deboche.


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Como escolher livros para crianças?



Esta é a pergunta que eu mais ouço quando digo que pesquiso literatura infantil. Pais e mães relatam que não sabem como selecionar um bom livro para seus filhos nas livrarias. Quando falo que tenho um blog sobre o assunto, buscam aqui recomendações, ou "dicas" de livros. De fato, faço aqui o que chamei de crítica literária amadora (ou semi-amadora, ou semi-acadêmica) de livros infantis. Por aí é possível que meus leitores encontrem algo de interesse. Afinal, é função da crítica despertar o desejo do contato direto com a obra.

Mas minha escrita é lenta e espaçada, e cobre muito pouco do universo de obras literárias para crianças disponíveis no mercado, nacionais ou traduzidas. Quem vier aqui encontrará mais uma reflexão sobre as obras que propriamente indicações de compra.

"Eu queria uma lista", disse a mãe de um colega da minha filha. É evidente que existe uma quebra na mediação da leitura. De maneira geral, não há adultos leitores para legarem às crianças este hábito, como se diz, que prefiro chamar de amor pela literatura. É difícil transmitir aos nossos filhos, netos, alunos, sobrinhos etc. algo que nos falta, que não é exatamente nosso métier. (Esta é uma reflexão que ultrapassa a literatura: que herança cultural e afetiva temos para legar aos nossos descendentes? Habilidades artesanais, sabedorias, dons artísticos, intuições? Ou estamos só pagando contas?)

Uma boa maneira de começar é buscar os livros de que você gostava quando era criança. Muitos ainda podem ser encontrados. Mary e Eliardo França (coleção Gato e Rato), Ziraldo, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, clássicos como Lúcia já vou indo, de Maria Heloísa Penteado...

Se suas memórias de leitura se perderam num abismo, pois bem, façamos as listas. Se nos sentimos incapazes de julgar um bom ou um mau livro, honesto aquele que busca indicações com quem tem mais repertório.

Desnecessário que eu apresente aqui uma seleta própria de livros infantis. Há muitas instituições que fazem isso. Sugiro, portanto, algumas fontes onde os adultos podem procurar títulos já triados, e evitar gastar dinheiro com os maus livros:

- A Revista Crescer divulga anualmente uma lista com os 30 melhores livros. Trata-se de uma instituição com fins lucrativos, que tem no júri vários nomes ligados a editoras. Ainda assim, não é uma seleção que se despreze, e é um bom começo para quem não tem ideia do que comprar.

- A Fundação Nacional do LivroInfantil e Juvenil (FNLIJ) é uma excelente referência. Além dos livros premiados em várias categorias, a FNLIJ tem o selo Altamente Recomendável, mais uma lista de livros que deveriam compor bibliotecas infantis. Os jurados são pessoas experientes no ramo. 

- O Programa Nacional Bibliotecada Escola (PNBE), que distribui (distribuía? continuará distribuindo?) livros para escolas públicas, divulga em seu site os títulos que compõem os acervos, por nível de ensino. A seleção tem sido feita pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da UFMG, por professores extremamente competentes. É só ver o que o governo comprou e comprar igual.

As listas, acervos, prêmios fazem um recorte nesse universo tão heterogêneo que é o mercado editorial infantil. Escolher livros a partir daí, quando não se têm muitas referências próprias, é um caminho. E que os adultos tomem tempo para ler junto com as crianças, e assim ir preenchendo esses vazios da memória.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Câmara Cascudo, o nosso Grimm



Ontem um amigo que morou na Alemanha se queixava da pouca importância dada no Brasil aos nossos folcloristas. Disse que na Alemanha as crianças são apresentadas aos contos recolhidos pelos irmãos Grimm ainda na primeira infância. Aqui, as crianças estão aprendendo folclore via Maurício de Sousa. E não é por falta de bons livros.

A coleção Histórias à Brasileira, da Companhia das Letrinhas, traz vários contos folclóricos nacionais recontados por Ana Maria Machado e ilustrados por Odilon Moraes. Quem conhece as histórias de Grimm vai encontrar várias semelhanças, explicadas pela nossa história colonial, que mescla tradições folclóricas europeias, indígena e africana. Os contos que compõem essa coleção foram recolhidos por Ana Maria Machado a partir do legado de autores como Luís da Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Monteiro Lobato, Couto de Magalhães, entre outros. Mas não é indispensável atualizar estas velhas e eternas histórias para apresentá-las às crianças. Vamos direto à fonte.

Há algum tempo temos trazido da biblioteca infantil os livros da coleção Contos de Encantamento, publicados na primeira década deste nosso século pela editora Global. São quatro livros e cinco contos: Couro de piolho, Maria Gomes, A princesa de Bambuluá, O marido da Mãe d'Água e A princesa e o gigante (estes dois últimos publicados em um único volume). Os textos foram extraídos da obra Contos tradicionais do Brasil (Global, 2000), de Câmara Cascudo, e publicados nesta colação com belíssimas ilustrações de Cláudia Scatamacchia.

Página interna de A princesa de Bambuluá (2003).
É incompreensível que Cascudo não figure de maneira sistemática nos currículos escolares. Se fosse por falta de uma apresentação visual adequada às crianças, esta coleção da Global viria eliminar qualquer desculpa. Se as histórias são fascinantes, o texto traz marcas de uma oralidade ao mesmo tempo popular e erudita que delicia os ouvidos. Cito um trecho do conto A princesa de Bambuluá, que conta a peregrinação do herói João:

"No quarto dia de viagem viu uma casinha no alto de uma serra, lá em cima, muito alvinha. Subiu com dificuldade e bateu palmas um tempo sem fim. Finalmente entrou e deparou um velho, velho, velho, tão velho que vivia dentro de uma cabaça, enrolado em pasta de algodão e suspenso em cima do fogo."

Os livros nós temos, e são tesouros. A grande questão é: o que está entrando entre as crianças e os livros?

terça-feira, 21 de junho de 2016

Literatura infantil e crítica política


Por que tanto me incomodam alguns livros infantis que se pressupõem críticos, que pretendem dar às crianças uma educação política, se a rigor eu concordo com sua posição? O que há neles, na sua forma, no seu enredo, na maneira de insinuar – normalmente nada sutil – suas ideias que deita por terra sua unidade e sua coerência?

Devo falar aqui de um livro cujo título e autores não me lembro e que tampouco vale a pena mencionar (mais um dos maus livros que vêm da biblioteca). É a história de uma vaca que decide voar e por isso passa a ser perseguida pelo ditador da cidade, um urubu, que proíbe de voar os animais que não têm asas. Começa com aquele velho clichê do personagem que tem um sonho absurdo e por isso é motivo de chacota. Então o sonho se realiza sem maiores explicações, deixando desconcertados todos os que faziam a crítica.

Ora, vacas não voam. Ah, dirão, mas é literatura infantil, e vacas podem voar na literatura infantil. Isso é evidente; vacas podem voar em qualquer literatura, o que já foi feito antes. Mas fazer a vaca voar para mostrar que todos os sonhos são possíveis, isso só mesmo na (sub)literatura infantil.

Passando desse início bastante mal construído, o livro melhora ao descrever os mecanismos de reação do povo e do ditador diante da vaca voadora. As pessoas fingem não ver, dizem que a vaca está louca. O ditador faz leis complicadas, manda prender, e por fim, sem conseguir capturar o animal, apela para a mídia, enchendo os jornais com notícias sobre os perigos de voar. Em meio à narração, porém, o autor sente a necessidade de orientar a leitura o tempo todo, inserindo comentários entre parênteses, explicitando uma interpretação que deveria ser feita pelo leitor.   

Terminada a leitura com minhas filhas, fiquei me perguntando: qual o problema deste livro? Qual a mentira que está aqui dentro? Por que ser absolutamente avessa a qualquer sorte de autoritarismo não foi suficiente para que eu me identificasse com ele?

A resposta encontrei na simplificação do personagem do urubu: o ditador é um grande estraga-prazeres. Só isso. Um malvado, mal humorado, infeliz e egocêntrico que não quer que os outros sejam felizes. Não há qualquer referência à injustiça, à miséria, ao tecido social da cidade. Não há qualquer referência ao capital, às corporações que estão por trás do ditador e que têm interesses – sobretudo econômicos – na sua manutenção no poder. Pois é assim que funciona uma ditadura, seja ela explicitada pela figura absoluta de uma autoridade violenta, seja pelo poder brando do capitalismo liberal.

Se essa realidade é complicada demais para ser explicada às crianças, Ângela-Lago, Bartolomeu Campos de Queirós, Maurice Sendak, Jutta Bauer lograram, com crueza ou delicadeza, trazer facetas dela para as crianças. Sem mentiras.

É importante não confundir fantasia com mentira e realismo com aquilo que acontece no dia-a-dia. O realismo trata da verdade, não importa se com elementos fantásticos ou não. Uma narrativa cotidiana, por sua vez, pode trazer grandes engodos ideológicos. E centralizar a maldade em um único personagem, redimindo todos aqueles que trabalharam para ele e foram beneficiados por isso, é um grande engodo ideológico.

Personificar o mal em um único indivíduo é uma ferramenta que tem sido historicamente utilizada para golpes políticos, mais ou menos declarados: o bode expiatório (curiosamente, o nome de um dos personagens do livro em questão) apazigua as multidões – que então podem voar, ou achar que estão voando livremente. É assim que um livro anti-ditadura, escrito por um autor defensor da democracia, pode paradoxalmente contribuir para a formação de um leitorado ideologicamente mais vulnerável.

Outra confusão muito frequente na literatura infantil é o nivelamento das relações de autoridade, com a negação da obediência e da submissão aos pais sob a justificativa de serem um paralelo da opressão social. O questionamento – necessário – das estruturas sociais e familiares tradicionais não pode desembocar em uma outra forma de dogmatismo, a primazia absoluta dos desejos individuais, e uma perda de referências a respeito de em quem a criança pode confiar.

O personagem ícone do mal não é novo, e o maniqueísmo simplista é o que predomina na produção da indústria cultural. Mas na literatura crítica não pode ser assim.  

Mas, enfim, há ainda quem creia que os bons são maioria.