Eva Furnari é uma entre poucos autores
de livros infantis que dominam com maestria as artes da redação e da
ilustração. Verdade que suas ilustrações são bem marcadas, você bate o olho e
vê que é Eva Furnari. Mas apesar do repertório estético um tanto limitado, se a compararmos a um artista como Renato Moriconi, por exemplo, seus
desenhos são extremamente expressivos, engraçados e cheios de detalhes que
contribuem para a narrativa. Não é a toa que a autora começou a carreira com
livros-imagem, inspirados nas histórias em quadrinhos.
Quanto à composição do texto, o
brilhantismo de Eva Furnari consiste em saber combinar demandas muitas vezes
contraditórias de públicos diversos: em primeiro lugar, o pressuposto destinatário
do livro infantil – a criança; em segundo lugar, o sistema educacional,
principal responsável (pelo menos no Brasil) pelo que as crianças lerão; em
terceiro lugar, a crítica especializada. Porque os livros de Eva Furnari são muito
prazerosos de ler, engraçados, ricos em jogos de linguagem que deliciam as
crianças. Possuem também muitas vezes elementos pedagógicos que os levarão a
serem selecionados para leitura nas escolas. E, por fim, são livros que fogem
dos lugares comuns, inovam e dão relevo às potencialidades estéticas da língua,
o que é importante para a crítica literária.
Como exemplo, cito Felpo Filva (Moderna, 2006), a história
de um coelho poeta que sofre de solidão por ter as orelhas desiguais. Um dia ele
recebe a carta de uma fã com críticas ao pessimismo de seus poemas. Furnari
trabalha, na correspondência de Felpo com a coelha Charlô, diversos gêneros textuais: poema, carta, receita de bolo, telegrama, bula de medicamento, cartão
postal, conto de fada, fábula, canção. Um prato cheio para as professoras de
redação. Mas Eva Furnari consegue ser pedagógica sem ser insípida, e toda a
brincadeira com os gêneros textuais é uma experiência com a língua, muito
bem-humorada e sonora.
Outro dos meus personagens preferidos é o Lolo Barnabé (Moderna, 2000), um homem das cavernas que, junto com a mulher, desenvolve toda uma parafernália tecnológica em prol de seu conforto, e com isso vai criando outros problemas que ele resolve com mais parafernália tecnológica, num ciclo sem fim. É toda a história da civilização na vida de um só indivíduo – que, no fim do livro, vai fazer uma fogueira no quintal com a família pra tentar achar uma solução para sair da encrenca em que se meteram.
Cocô de passarinho (Cia das Letrinhas, 1998) é outro livrinho
genial, com um trabalho fantástico de ilustração. Este narra a rotina de uma
pequena cidade de seis habitantes, que todas as tardes se reuniam sob uma
árvore onde habitavam seis passarinhos. A conversa, que era todo dia a mesma,
não podia ser mais contemporânea:
- Que calor.
- Calor horrível.
- Como vão os negócios?
- Vão mal.
- Ano que vem vai ser pior.
- Vai.
Tendo retratado a árvore com
os habitantes embaixo para introduzir a narrativa, Eva Furnari passa a apresentar
ora as pessoas, ora os pássaros, num movimento que se assemelha a uma câmera de
vídeo subindo e descendo. Afinal, uns não veem os outros. Os moradores da
cidade somente se dão conta de que os passarinhos existem por causa do cocô na
cabeça – problema que os leva a mudar um pouco a conversa para encontrar uma
solução.
Pessoalmente, acho muito rico
quando um livro infantil traz alguma questão social, alguma crítica à maneira
como vivemos, mesmo que de maneira sutil. Melhor ainda quando a questão é
colocada de forma aberta, de modo a possibilitar ao leitor uma leitura e uma
reflexão próprias. É o que faz Eva Furnari. Contrasto sua postura com a de
Sylvia Orthof, que embora tenha o mérito de questionar o status quo, o faz de maneira igualmente dogmática. Em Fada cisco quase nada (Ática, 1997,–
livrinho, aliás, ilustrado pela Eva Furnari), para criticar o excesso de
organização exigido das crianças, Orthof exalta a bagunça como uma condição
natural da infância, e só falta escrever uma moral no final da história:
"Melhor bagunça do que ordem" (gosto do livro, no entanto). Mesma
coisa em seu célebre Uxa, ora fada, ora
bruxa (Nova Fronteira, 1985), que não apenas subverte a ordem clássica da
boa moça, mas defende uma nova ordem marcada pela transgressão (este, para mim,
começa bem e depois descamba). Sem desmerecer o papel de Sylvia Orthof na
literatura brasileira, especialmente durante a redemocratização, me agrada mais
a postura de Furnari, que deixa ao leitor a tarefa de tirar suas conclusões
(como em Cacoete, Ática, 2005).
Finalmente, não posso deixar de
lembrar os nomes esdrúxulos que Furnari adora inventar, seja para seus
personagens, cenários ou objetos, como em Umbigo
indiscreto (Moderna, 2010), que se passa na Bolofofolândia.
Eva Furnari é, assim, um dos
grandes nomes da nossa literatura infantil, justamente premiada e traduzida no
exterior. É possível vê-la e ouvi-la, com seu jeito terno e encantador, neste videozinho produzido pela Moderna, editora com a qual Furnari agora tem contrato de exclusividade: http://bibliotecaevafurnari.com.br/videos
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