segunda-feira, 20 de março de 2017

A escola na literatura infantil Parte 1 - As Crônicas de Nárnia



C. S. Lewis – As Crônicas de Nárnia (Reino Unido, 1950-1956. Tradução brasileira por Paulo Mendes Campos, ed. Martins Fontes.)

No Brasil, a obra literária de C. S. Lewis permaneceu por muito tempo restrita aos círculos cristãos devido ao seu caráter eminentemente alegórico e messiânico. Tenho a primeira edição brasileira de The Magician's Nephew, de 1983, então batizada como Os anéis mágicos, publicada pela editora Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABU). Guardo num plástico para evitar que a capa e a folha de rosto, já soltas, se percam. Pouco antes de começarem a sair as adaptações cinematográficas das Crônicas, em 2005, a pequena ABU editora vendeu os direitos de publicação para a Martins Fontes[1], já prevendo sua incapacidade de atender à demanda que então se sucederia. A Martins Fontes adotou a mesma tradução que a ABU editora havia encomendado a Paulo Mendes Campos, porém substituiu alguns títulos por versões mais literais e reinseriu os nomes próprios ingleses no lugar dos nomes abrasileirados da ABU editora – para a minha infelicidade, tão habituada a Ari e Paula (em vez de Digory e Polly).

A coleção, que já pode ser considerada um clássico, popularizou-se então entre o público brasileiro, encantado pelas aventuras fantásticas no reino de Nárnia, para além de seu fundo religioso. Pesquisador e professor de literatura, tendo atuado nas universidades de Oxford e Cambridge, Lewis era detentor de um amplo repertório de referências que ele incorpora em sua obra ficcional infantil – como Dante e Milton – de maneira envolvente. Para mim, foram livros "para se morar", nos termos de Monteiro Lobato. Meu pai nos contava essas histórias na hora de dormir, ouvíamos fascinados, sempre esperando a sequência. Quando adquiri um pouco de competência de leitura, devorei toda a série. Lembro-me de checar o fundo do meu guarda-roupa na esperança de encontrar um caminho para outro mundo.

Mas passemos à presença da escola na obra de Lewis. Ele inicia seu O sobrinho do mago (que se tornaria o primeiro livro da série Crônicas de Nárnia, embora tenha sido o segundo a ser publicado) afirmando que a história que se vai narrar aconteceu em um tempo distante, quando "as escolas eram ainda piores que as de hoje". Sua visão negativa das instituições de ensino britânicas, derivada das próprias experiências de Lewis na infância e na juventude (relatadas em Surpreendido pela alegria, ed. Ultimato, 2015), ressurge em outros livros da série.

Em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, a crítica aparece nos diálogos entre as crianças e o velho professor Ari (Digory), na casa de quem estão passando férias. O professor, figura cuja sabedoria provém da vivência pessoal de acontecimentos sobrenaturais, assim lamenta a dificuldade de as crianças compreenderem que a verdade é mais facilmente identificada pela idoneidade de quem a profere que por sua aparente plausibilidade: "Eu gostaria de saber o que essas crianças aprendem na escola!"

Em Príncipe Caspian, o retorno do leão Aslam – figura simbólica que representa o messias – para libertar os narnianos dos telmarinos, povo que dominava então sua terra, é marcado pela destruição das figuras de opressão – entre elas a escola:

"A primeira casa que encontraram foi uma escola, uma escola de meninas, onde uma porção de alunas de Nárnia, com cabelo muito esticado e golas muito apertadas e feias, e usando meias muito grossas, assistia a uma aula de História.
A História que se aprendia em Nárnia durante o reinado de Miraz era mais insípida do que a história mais verdadeira que se possa imaginar e muito menos verdadeira do que o mais apaixonante conto de aventuras.
– Goendolina, se continuar olhando para fora e não prestar atenção, dou-lhe um castigo! – disse a professora.
– Por favor... – disse Goendolina.
– Ouviu ou não ouviu o que eu disse?
– Mas, professora – insistiu Goendolina – lá fora tem um leão!
– Em vez de um, vou lhe dar dois castigos, pra você não dizer bobagens. E agora...
Um rugido cortou-lhe a palavra. E a hera começou a crescer e a enroscar-se pelas janelas da sala de aula. As paredes ficaram atapetadas de um verde cintilante e o teto cobriu-se de folhas. De repente, a professora percebeu que estava na floresta, numa clareira relvada. Quis agarrar-se à carteira para apoiar-se e viu que esta se transformava numa roseira. Gente selvagem, como ela nunca imaginara que pudesse existir, comprimia-se ao redor. Ao ver o Leão, começou a gritar e a fugir, e com ela toda a classe, formada na maior parte por meninas rechonchudas e de pernas roliças."

Mas o retrato mais pessimista da escola talvez esteja em A cadeira de prata. A narrativa começa com uma das protagonistas, Jill, vítima de bullying, chorando atrás do ginásio de esportes do colégio. Assim Lewis descreve a instituição:

"Era um 'colégio experimental' para meninos e meninas. Os diretores achavam que as crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de 'interessantes casos psicológicos' e passava horas conversando com os alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados."

Depois da viagem fantástica a Nárnia – comum a todos os livros da série – os meninos Jill e Eustáquio retornam ao colégio e, autorizados por Aslam e acompanhados pelo próprio príncipe Caspian de Nárnia, saem distribuindo chicotadas entre os seus algozes. O episódio rende a destituição da diretora, depois da qual as coisas melhoram no colégio.

Em linhas gerais, é com acidez e ressentimento que a escola é representada em As Crônicas de Nárnia. Embora sejam poucos os momentos em que ela aparece nas narrativas, ambientadas sempre num espaço fora do cotidiano – procedimento bastante usual na literatura infantil e juvenil – são onipresentes as breves referências aos seus métodos alienantes e obsoletos de ensino, bem como as denúncias às atrocidades que ali têm lugar. Os príncipes sempre lamentam o fato de que terão de ser educados, enquanto os plebeus exaltam sua liberdade e autonomia. E é sempre fora da escola que os personagens amadurecem, se desenvolvem e se aperfeiçoam, numa valorização da vivência sobre o ensino formal.


[1] Esta informação me foi fornecida pelo meu pai, José Miranda Filho, que foi presidente da Aliança Bíblica Universitária durante aqueles anos e tinha relações próximas com a ABU Editora.

Um comentário:

  1. Gostei das pontuações, Lia! Imagina o que Lewis diria sobre a escola de hoje! 🙁
    Acompanho esse blog, já li ele todo. Um abraço!

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