Minha filhas frequentam a
biblioteca e gostam de escolher os livros que levarão para casa. Também ganham
livros, e gostam deles. São os livros que eu não seleciono e que, a partir de
um julgamento do mérito estético que minha formação me qualifica minimamente a
fazer, são ruins. O que fazer nestes casos? Como agir como formador e educador,
sem descambar para censor?
Quando se trata de comprar
livros, interfiro mais. Interfiro porque livros são caros e trabalhamos muito
para fechar as contas. Explico que precisamos prestigiar os escritores que
gastaram tempo inventando uma história original, contada de um jeito bonito, em
vez de investir nosso dinheiro nas mesmas histórias que já lemos infinitas
vezes, com pouca diferença entre elas. Ou os ilustradores, artistas que
passaram meses para criar imagens lindas, em vez de operadores anônimos de softwares de criação visual que apenas
substituem a cor dos cabelos e vestidos dos personagens da Disney para se
passarem por novas ilustrações. Na maior parte das vezes, simplesmente compro
os livros pela internet sem lhes pedir a opinião, e elas se deliciam depois
explorando a caixa surpresa que chegou pelo correio.
É natural que a criança busque
aquilo que lhe é familiar, e aí entra nosso papel de educadores estéticos. Elas
têm uma facilidade enorme para reconhecer o traço marcante de alguns
ilustradores, como Eva Furnari, Janaína Tokitaka ou Mariana Massarani. Quando
já são alfabetizadas, reconhecem também o nome dos autores – se lembrarmos
sempre de mencioná-los nas leituras compartilhadas. Se já tiveram contato com um
livro de certo autor ou ilustrador, e se gostaram dele, certamente serão
atraídos por outras obras dos mesmos autores ou ilustradores na estante de uma
biblioteca, em uma sala de leitura ou livraria.
Se não apresentamos às crianças
obras de qualidade literária – ou seja: textos de mérito estético e ilustrações
de mérito artístico –, é possível que elas as rejeitem por uma simples questão
de estranhamento. Se elas têm contato com a indústria cultural, por outro lado
– o que é quase inevitável nos dias de hoje, especialmente se a criança
frequenta a escola –, identificarão rapidamente os personagens conhecidos e
buscarão livros que são apenas reproduções estáticas de desenhos animados.
Confesso que me aborrece um pouco
o discurso da mínima intervenção na formação da criança, de modo que ela tenha
a liberdade de se tornar o que quiser. Como se houvesse uma programação
anterior à própria existência da criança e superior a qualquer coisa que os adultos
lhe possam ensinar. Esse discurso, que se pretende libertário, ignora a
impossibilidade de isolar qualquer "bom selvagem" das influências da
sociedade. A criança constrói repertórios de conhecimentos, valores,
sentimentos, a partir de sua interação com o mundo, e a partir desse repertório
é que ela passa a julgar o mundo. Elas irão à escola, terão amigos, mentores,
estarão expostas à publicidade e à cultura de massas, e por todos eles serão
influenciadas – podendo, claro, devolver essa influência. E é justamente para
que desenvolvam esse senso crítico que precisamos educá-las. Em outras
palavras: se alguém vai doutrinar minhas filhas, prefiro que seja eu.
Tendo cumprido nossa função de
formadores do gosto, podemos deixar as crianças livres para escolher. E, de
fato, elas poderão achar muito chatos alguns livros de alta literatura que
coloquei dentro de casa. Mas, sosseguemos, as obras rejeitadas não serão a
maioria. Elas gostarão também de livrinhos de princesa que ganharam de
aniversário, e não os jogarei no lixo. Então seu repertório será formado de
bons e maus livros, com bastante literatura intermediária entre eles.
Haverá um movimento entre livros
que são mero entretenimento, lições de moral ou transmissão de conhecimentos
banais e aqueles outros que vão efetivamente auxiliar o leitor a se situar no
caos do mundo. Livros que vão estimular o que têm de mais humano, nas palavras
de Antonio Candido: "o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de
penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do humor." Essa capacidade humanizadora,
porém, também está presente nas obras de menor qualidade, e não precisamos
temê-las se tivermos garantido o acesso da criança, com a mediação adequada,
também às grandes obras literárias – que, embora haja quem negue, abundam
também na literatura infantil.
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