É difícil refletir sobre
obviedades. Ler é importante. Devemos ensinar as crianças a ler, e nelas
incutir hábitos de leitura. Mas, por quê?
É necessário perguntar por que,
uma vez que aquilo que declaramos nem sempre corresponde àquilo que praticamos.
É necessário perguntar por que, pois se não praticamos é porque, no fundo, não
temos tanta certeza daquilo. E se há a dúvida, reflitamos.
Reli recentemente um texto do sociólogo
Antonio Candido intitulado O direito à
literatura. Nele o autor relaciona a organização formal das palavras em um
texto literário à nossa capacitação para nos situarmos no mundo. As palavras,
como tijolos em uma construção, nos levam a ordenar primeiro o nosso espírito,
depois o mundo em volta. Essa literariedade não está presente apenas nas formas
eruditas, mas também naquelas mais simples, como as parlendas, as canções de
ninar, as quadrinhas, as histórias de animais.
Ora, a criança, recém chegada ao
mundo, está em constante processo de organização interna e de elaboração da
realidade externa. Por isso perguntam, o tempo todo, por quê? Por isso querem
entender tudo, nos mínimos detalhes, pois o repertório de informações de que
dispõem ainda é limitado diante da complexidade da vida – e sempre mais
complexa, com o processo civilizatório e industrial que gerou uma
especialização profissional cada vez mais abstrata. É bem mais simples para uma
criança entender um pai que capina a roça que um pai funcionário público.
A mensagem codificada na forma
literária, com sua estrutura própria, tem seu efeito ampliado. Pode ser por
meio do ritmo, das rimas, dos sons, de aliterações, assonâncias ou outros
recursos estilísticos. Essa intuição ancestral se manifesta por meio das
músicas tão usadas pelas professoras em creches e pré-escolas como forma de
conduzir atividades, acalmar e concentrar as crianças. Segundo Candido, a
mensagem veiculada pelas palavras organizadas nos toca porque obedece a certa
ordem.
Privar um indivíduo da literatura
é privá-lo da ordem. Não a ordem em seu pior sentido, como negação da
criatividade, mas justamente a ordem que possibilita essa criatividade. Ordenar
o que vemos e o que ouvimos é uma prática ligada à própria noção de sociedade,
como testemunham as pinturas rupestres e as histórias transmitidas oralmente de
geração a geração em sociedades ágrafas.
Pela palavra ordenada o mundo foi
criado a partir do caos. Pela palavra ordenada, conseguimos transitar no mundo
sem enlouquecer. Candido diz que toda obra literária pressupõe a superação do
caos e faz uma proposta de sentido. Os sentimentos da literatura nos são
familiares – medo, paixão, angústia, etc. –, mas muitas vezes não chegamos a formulá-los, e permanecem vagos em nossa mente.
Para a criança, a palavra
ordenada lhe dará as ferramentas para que se localize no desconhecido, e
elabore o enorme montante de novas informações que recebe a cada momento. Se a
literatura pode ter efeitos imprevistos, talvez perigosos – daí ter sido
historicamente o maior alvo da censura – é um risco que precisamos correr. A
literatura é uma necessidade universal.
"A literatura desenvolve em
nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e
abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante."
Antonio Candido