C. S. Lewis – As Crônicas de Nárnia (Reino
Unido, 1950-1956. Tradução brasileira por Paulo Mendes Campos, ed. Martins
Fontes.)
No Brasil, a obra literária de C. S. Lewis permaneceu
por muito tempo restrita aos círculos cristãos devido ao seu caráter
eminentemente alegórico e messiânico. Tenho a primeira edição brasileira de
The Magician's Nephew, de 1983, então
batizada como
Os anéis mágicos, publicada
pela editora Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABU). Guardo num plástico
para evitar que a capa e a folha de rosto, já soltas, se percam. Pouco antes de
começarem a sair as adaptações cinematográficas das
Crônicas, em 2005, a pequena ABU editora vendeu os direitos de
publicação para a Martins Fontes
,
já prevendo sua incapacidade de atender à demanda que então se sucederia. A
Martins Fontes adotou a mesma tradução que a ABU editora havia encomendado a
Paulo Mendes Campos, porém substituiu alguns títulos por versões mais literais
e reinseriu os nomes próprios ingleses no lugar dos nomes abrasileirados da ABU
editora – para a minha infelicidade, tão habituada a Ari e Paula (em vez de
Digory e Polly).
A coleção, que já pode ser considerada um clássico,
popularizou-se então entre o público brasileiro, encantado pelas aventuras
fantásticas no reino de Nárnia, para além de seu fundo religioso. Pesquisador e
professor de literatura, tendo atuado nas universidades de Oxford e Cambridge,
Lewis era detentor de um amplo repertório de referências que ele incorpora em
sua obra ficcional infantil – como Dante e Milton – de maneira envolvente. Para
mim, foram livros "para se morar", nos termos de Monteiro Lobato. Meu
pai nos contava essas histórias na hora de dormir, ouvíamos fascinados, sempre
esperando a sequência. Quando adquiri um pouco de competência de leitura,
devorei toda a série. Lembro-me de checar o fundo do meu guarda-roupa na
esperança de encontrar um caminho para outro mundo.
Mas passemos à presença da escola na obra de Lewis.
Ele inicia seu O sobrinho do mago
(que se tornaria o primeiro livro da série Crônicas
de Nárnia, embora tenha sido o segundo a ser publicado) afirmando que a
história que se vai narrar aconteceu em um tempo distante, quando "as
escolas eram ainda piores que as de hoje". Sua visão negativa das
instituições de ensino britânicas, derivada das próprias experiências de Lewis
na infância e na juventude (relatadas em Surpreendido
pela alegria, ed. Ultimato, 2015), ressurge em outros livros da série.
Em O leão, a
feiticeira e o guarda-roupa, a crítica aparece nos diálogos entre as
crianças e o velho professor Ari (Digory), na casa de quem estão passando
férias. O professor, figura cuja sabedoria provém da vivência pessoal de
acontecimentos sobrenaturais, assim lamenta a dificuldade de as crianças
compreenderem que a verdade é mais facilmente identificada pela idoneidade de
quem a profere que por sua aparente plausibilidade: "Eu gostaria de saber
o que essas crianças aprendem na escola!"
Em Príncipe
Caspian, o retorno do leão Aslam – figura simbólica que representa o
messias – para libertar os narnianos dos telmarinos, povo que dominava então sua
terra, é marcado pela destruição das figuras de opressão – entre elas a escola:
"A
primeira casa que encontraram foi uma escola, uma escola de meninas, onde uma
porção de alunas de Nárnia, com cabelo muito esticado e golas muito apertadas e
feias, e usando meias muito grossas, assistia a uma aula de História.
A
História que se aprendia em Nárnia durante o reinado de Miraz era mais insípida
do que a história mais verdadeira que se possa imaginar e muito menos
verdadeira do que o mais apaixonante conto de aventuras.
–
Goendolina, se continuar olhando para fora e não prestar atenção, dou-lhe um
castigo! – disse a professora.
– Por favor... – disse
Goendolina.
– Ouviu ou não ouviu o que eu
disse?
– Mas, professora – insistiu
Goendolina – lá fora tem um leão!
– Em vez de um, vou lhe dar dois
castigos, pra você não dizer bobagens. E agora...
Um
rugido cortou-lhe a palavra. E a hera começou a crescer e a enroscar-se pelas
janelas da sala de aula. As paredes ficaram atapetadas de um verde cintilante e
o teto cobriu-se de folhas. De repente, a professora percebeu que estava na
floresta, numa clareira relvada. Quis agarrar-se à carteira para apoiar-se e
viu que esta se transformava numa roseira. Gente selvagem, como ela nunca
imaginara que pudesse existir, comprimia-se ao redor. Ao ver o Leão, começou a
gritar e a fugir, e com ela toda a classe, formada na maior parte por meninas
rechonchudas e de pernas roliças."
Mas o retrato mais pessimista da escola talvez
esteja em A cadeira de prata. A
narrativa começa com uma das protagonistas, Jill, vítima de bullying, chorando atrás do ginásio de
esportes do colégio. Assim Lewis descreve a instituição:
"Era
um 'colégio experimental' para meninos e meninas. Os diretores achavam que as
crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou
quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo:
coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali,
não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era
expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de 'interessantes casos
psicológicos' e passava horas conversando com os alunos. E estes, se
encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando
privilegiados."
Depois da viagem fantástica a Nárnia – comum a
todos os livros da série – os meninos Jill e Eustáquio retornam ao colégio e,
autorizados por Aslam e acompanhados pelo próprio príncipe Caspian de Nárnia,
saem distribuindo chicotadas entre os seus algozes. O episódio rende a
destituição da diretora, depois da qual as coisas melhoram no colégio.
Em linhas gerais, é com acidez e ressentimento que
a escola é representada em As Crônicas de
Nárnia. Embora sejam poucos os momentos em que ela aparece nas narrativas,
ambientadas sempre num espaço fora do cotidiano – procedimento bastante usual
na literatura infantil e juvenil – são onipresentes as breves referências aos
seus métodos alienantes e obsoletos de ensino, bem como as denúncias às
atrocidades que ali têm lugar. Os príncipes sempre lamentam o fato de que terão
de ser educados, enquanto os plebeus exaltam sua liberdade e autonomia. E é sempre
fora da escola que os personagens amadurecem, se desenvolvem e se aperfeiçoam,
numa valorização da vivência sobre o ensino formal.