Por que tanto me incomodam alguns livros
infantis que se pressupõem críticos, que pretendem dar às crianças uma educação
política, se a rigor eu concordo com sua posição? O que há neles, na sua forma,
no seu enredo, na maneira de insinuar – normalmente nada sutil – suas ideias
que deita por terra sua unidade e sua coerência?
Devo falar aqui de um livro cujo título
e autores não me lembro e que tampouco vale a pena mencionar (mais um dos maus livros que vêm da biblioteca). É a história de uma vaca que decide voar e por
isso passa a ser perseguida pelo ditador da cidade, um urubu, que proíbe de
voar os animais que não têm asas. Começa com aquele velho clichê do personagem
que tem um sonho absurdo e por isso é motivo de chacota. Então o sonho se realiza
sem maiores explicações, deixando desconcertados todos os que faziam a crítica.
Ora, vacas não voam. Ah, dirão, mas é
literatura infantil, e vacas podem voar na literatura infantil. Isso é
evidente; vacas podem voar em qualquer literatura, o que já foi feito antes.
Mas fazer a vaca voar para mostrar que todos os sonhos são possíveis, isso só
mesmo na (sub)literatura infantil.
Passando desse início bastante mal
construído, o livro melhora ao descrever os mecanismos de reação do povo e do
ditador diante da vaca voadora. As pessoas fingem não ver, dizem que a vaca
está louca. O ditador faz leis complicadas, manda prender, e por fim, sem
conseguir capturar o animal, apela para a mídia, enchendo os jornais com
notícias sobre os perigos de voar. Em meio à narração, porém, o autor sente a
necessidade de orientar a leitura o tempo todo, inserindo comentários entre
parênteses, explicitando uma interpretação que deveria ser feita pelo leitor.
Terminada a leitura com minhas filhas,
fiquei me perguntando: qual o problema deste livro? Qual a mentira que está aqui
dentro? Por que ser absolutamente avessa a qualquer sorte de autoritarismo não
foi suficiente para que eu me identificasse com ele?
A resposta encontrei na simplificação do
personagem do urubu: o ditador é um grande estraga-prazeres. Só isso. Um
malvado, mal humorado, infeliz e egocêntrico que não quer que os outros sejam
felizes. Não há qualquer referência à injustiça, à miséria, ao tecido social da
cidade. Não há qualquer referência ao capital, às corporações que estão por
trás do ditador e que têm interesses – sobretudo econômicos – na sua manutenção
no poder. Pois é assim que funciona uma ditadura, seja ela explicitada pela
figura absoluta de uma autoridade violenta, seja pelo poder brando do
capitalismo liberal.
Se essa realidade é complicada demais
para ser explicada às crianças, Ângela-Lago, Bartolomeu Campos de Queirós,
Maurice Sendak, Jutta Bauer lograram, com crueza ou delicadeza, trazer facetas
dela para as crianças. Sem mentiras.
É importante não confundir fantasia com
mentira e realismo com aquilo que acontece no dia-a-dia. O realismo trata da
verdade, não importa se com elementos fantásticos ou não. Uma narrativa
cotidiana, por sua vez, pode trazer grandes engodos ideológicos. E centralizar
a maldade em um único personagem, redimindo todos aqueles que trabalharam para
ele e foram beneficiados por isso, é um grande engodo ideológico.
Personificar o mal em um único indivíduo
é uma ferramenta que tem sido historicamente utilizada para golpes políticos, mais
ou menos declarados: o bode expiatório (curiosamente, o nome de um dos
personagens do livro em questão) apazigua as multidões – que então podem voar,
ou achar que estão voando livremente. É assim que um livro anti-ditadura,
escrito por um autor defensor da democracia, pode paradoxalmente contribuir
para a formação de um leitorado ideologicamente mais vulnerável.
Outra confusão muito frequente na
literatura infantil é o nivelamento das relações de autoridade, com a negação
da obediência e da submissão aos pais sob a justificativa de serem um paralelo
da opressão social. O questionamento – necessário – das estruturas sociais e
familiares tradicionais não pode desembocar em uma outra forma de dogmatismo, a
primazia absoluta dos desejos individuais, e uma perda de referências a
respeito de em quem a criança pode confiar.
O personagem ícone do mal não é novo, e
o maniqueísmo simplista é o que predomina na produção da indústria cultural.
Mas na literatura crítica não pode ser assim.
Mas, enfim, há ainda quem creia que os
bons são maioria.